Hoje, no dia da Festa de Nossa Senhora da Assunção, faz-me lembrar de que era por esta ocasião que o meu Pai fazia as contas com cada um dos trabalhadores contratados. Era interessante ver esse encontro, normalmente no Sábado antes da Santa Maria de Agosto, no escritório da Amoreirinha, com um grande livro de capa encarnada e onde estavam registadas as comedorias combinadas e já entregues, bem como os outros termos do contrato, como o polvilhal de cada um. Se não estivesse tudo entregue, fazia-se o câmbio em moeda (escudos), para acerto de contas e acordo para o novo ano (agrícola) que se iniciava.
Normalmente o vencimento anual era dividido em:
- Numerário;
- Comedorias: Azeite, Farinha, Carne de porco (entrega de porco vivo, mas pesado à matança) e queijos;
- Quinchoso – direito a uma pequena horta para produção de hortaliças e outra área para searas de grão, feijão, meloal, batatas e abóboras;
- Polvilhal - direito de pastagem para animais do trabalhador que integravam o rebanho.
Na nossa casa agrícola, e na maioria dos contratos principais, o valor em numerário tinha um peso muito insignificante, servindo, nalguns casos, apenas para acertos.
O Rabadão (maioral dos pastores) era o nosso trabalhador que mais ganhava, em meados dos anos sessenta, quando se encerrou a actividade da nossa casa agrícola por causa da doença de meu Pai, seguido do maioral das vacas, do feitor (Ganhão) e do manajeiro. Salvo erro, ele tinha 50 ovelhas, uma égua e recebia dois bezerros ao desmame, para alem das comedorias que rondavam cinco décas de azeite, a farinha ao longo do ano e 500 queijos curados. Era o responsável do bem-estar dos gados, no caso: ovelhas, vacas e porcos. Ele, Manuel Barreto de seu nome, era o pastor do rebanho das ovelhas afilhadas, e, portanto, da criação dos borregos, mas ao mesmo tempo, orientava os restantes pastores: do gado de alfeire, as ovelhas que estavam à espera de serem cobertas e as que já o estavam, no primeiro estádio da gestação. Nessa altura, fazia-se a tentativa de que as ovelhas parissem uniformemente no final do Inverno para que os borregos temporões (os primeiros a nascer e de melhor criação) estivessem em desmame no princípio da Primavera, na Páscoa e os serôdios (os últimos a nascer ou mais fracos para crescerem) saíam já na Ascensão. Durante os meses de Fevereiro, Março e Abril, ordenhavam-se as ovelhas para fabrico de queijo.
Os carneiros só iam para o rebanho do alfeire no final do Verão e durante o resto do ano andavam com os porcos de engorda.
Era bem importante a responsabilidade do Rabadão pois teria de providenciar a melhor alimentação possível para cada variedade de gado, sabendo que as vacas comem com a língua, isto é, preferem a erva já crescida, enquanto as ovelhas comem com os dentes a erva mais curta. Já os porcos andavam nos restos porque se não estiverem argolados fossam tudo e estragam as pastagens para os restantes animais.
As porcas criadeiras estavam normalmente no Almansor, onde ficava a malhada das porcas com as pocilgas, ou em Peromogão, onde foi feita outra de raiz, mas com azar, pois logo de seguida apareceu a peste suína africana e as porcas de criação e varrascos foram todas abatidas e queimadas. A vara dos leitões e porcos de alfeire começava por comer os agostadouros – restos das searas já ceifadas e depois ia para o montado de bolota para a engorda. Terminava com a venda dos animais durante os meses de Dezembro e Janeiro para as matanças. Era a chamada venda de porcos à perna pois normalmente os compradores levavam o seu com uma corda atada na perna do animal, para o conduzir. Estes animais podiam ser vendidos ‘a peso vivo’ – ficavam sem comer durante um dia e eram pesados. Havia umas tabelas para verificar os restantes descontos a fazer e de que resultava o valor a pagar. Outros eram vendidos ‘a peso morto’- o comprador matava o animal e só passadas umas horas ia o nosso pessoal para pesar o animal já morto e limpo das miudezas.
Este pessoal, contratado ao ano, recebia as comedorias por mês, ao longo do ano – normalmente uma almotolia de azeite de 3 a 5 litros, um alqueire de farinha – cerca de 15 Kg, enquanto a carne era entregue com um porco vivo. Nalgumas casas agrícolas a carne era distribuída já transformada em linguiças, toucinho, ossos de salgadeira, etc. A farinha, por sua vez, era levada pelo trabalhador para sua casa ou entregue à manteeira para fazer o pão. Normalmente a fornada era à Quarta feira e ao Sábado. Com que saudades me lembro das pequenas merendeiras que por vezes nos calhavam (pequenos pães feitos com as sobras da amassadura).
No Monte da Amoreirinha, por cima do forno, vivia o Ti Zé das Cabanas, gaseado da 1ª Grande Guerra (que se deixava dormir a comer ou fazer queijos) e tinha a incumbência de na altura do Alavão ir buscar o leite da ordenha. Era ele o aguadeiro, indo buscar água para o Monte numa pipa que ficava sob uma latada à frente da casa. O poço do Zé das Cabanas servia ainda para abeberamento do gado, estando hoje na bacia da barragem dos Minutos pelo que só aparece quando o nível da barragem baixa bastante.
A manteeira tinha a responsabilidade da cozinha – cada trabalhador levava a sua panela com a refeição por cozinhar, ou fazia o rancho para todos – ainda me lembro de almoçar sopa de alho, sopa de tomate, cozido e malassada. Tomava conta do galinheiro, da cozinha da ‘malta’ e do forno. Durante o alavão – fabrico do queijo, ajudava na estrafega. Durante muito tempo a função recaiu sobre a Ti Maria Tanganho, mulher do Ti Tanganho, maioral das parelhas, pais do Florival, ou Valico, como lhe chamávamos e do Luís, Vicente, Joana e Visitação. Havia ainda uma meia irmã, ou irmã torta como dizem, a Maria Alice Mirador, bem mais velha e apenas filha da ti Maria da Amoreirinha.
O pai do Valico foi o primeiro trabalhador do meu Pai quando iniciou labuta com a máquina de debulhar, à maquia, isto é, recebendo uma percentagem da semente apurada, em meados dos anos 20 do sec. XX e o filho Valico foi o meu último empregado já no sec. XXI. Que saudades tenho também destas relações que se perpetuavam entre as gerações.
Estas famílias, como os Tanganhos, os Barretos ou os Maximinos eram bem, ‘criados’ da casa – nasciam, cresciam e colaboravam connosco em harmonia.
O Valico Tanganho, quando casou, foi viver para o Alcarou do Meio (propriedade a 5 Km de Pavia de quem ia de Arraiolos a cerca de 15 Km) e era o responsável pela sua gestão e maneio do gado. Foi um autodidata e aprendeu a trabalhar com o tractor de rasto – o Allixamer, como lhe chamávamos, uma adaptação de um tanque de guerra para os trabalhos agrícolas;
A irmandade dos Barretos, filhos do Ti António Barreto, um antigo feitor vindo da casa agrícola do meu Avô Potes, tinham os postos mais elevados na nossa casa- O Joaquim Barreto, que foi para nosso quintaneiro (da Quinta de São José do Cano e anexas), casado com a Custódia e pais da Maria da Natividade (Bia). Foi com ele e com o Armando José Maximino (Carrasco) (afilhado de Crisma do Mané) que o Mané e eu, formámos sociedade para exploração das máquinas agrícolas e tractores que ficaram quando se arrendaram as propriedades grandes e ficámos só com o Guano e a Quinta de São José do Cano; o Zé era o chefe dos tractoristas e casou com uma filha do Ti Domingos, responsável pelo Guano e vacaria de turinas, quando substituiu o Nicolau quando este se reformou e cuja filha Inês foi a ama do Mané; o Armando Barreto, manajeiro dos trabalhos de rancho, que faleceu tragicamente ao cair, de uma pequena oliveira que estava a limpar, em cima do cume do machado (que ao cair ficou virado para cima). Era casado com a Jacinta Maria Coelho Vizeu e deixou órfãos a Mª Augusta e o António Joaquim. Estes ficaram a viver no Guano enquanto entenderam; o João Barreto também foi tractorista até que resolveu ir para a Suíça. Os dois mais novos, o António (que entrou para a Guarda Prisional em Sintra) e a Maria foram para a zona de Lisboa e por lá ficaram.
Já da geração dos Maximinos, filhos do Ti Jacinto Carrsco, nosso hortelão, o Armando foi também tractorista e seareiro de tomate, o Maximino José, que colaborava na horta e, anos mais tarde vim a encontrá-lo como jardineiro do Juventude de Évora (Clube de Futebol) e depois na Santa Casa da Misericórdia, e o Jacinto especializou-se em electricidade automóvel. O Filho do Armando, o Luís por aqui anda, como empresário de máquinas agrícolas e industriais.
Outros nomes me ocorrem como o Manuel e o Joaquim Magro, o primeiro, maioral das vacas salamanquinas e o segundo, maioral das porcas, juntamente com o Ti Barbas e com o Manuel Cardador, que o substituiu como afilhador.
Também não posso esquecer a Emília Manso (que viveu muitos anos na Quinta de São José numa pequena cas que ficou conhecida pela casa da Emília) com os seus filhos - Manuel que trabalhou connosco enquanto tractorista, o Miguel, que se especializou como ferrador de bestas e mais tarde foi talhante no Mercado Municipal de Évora, e o Abílio, o mais novo, que deve ter ido para fora. A Bela, filha do Manuel, trabalhou comigo na APPACDM e o marido, o Carlos, foi nosso tosquiador durante anos.
Esta é uma lembrança para memória futura que pede uma oração de acção de graças a Deus pelos colaboradores que a nossa casa agrícola teve, e com quem nos relacionámos como familiares e amigos, que continuámos a ser até ao presente.
Do Livro da Guida, “Em Nome da Santíssima Trindade”
"Como pousadeira veio morar para a quinta a Emília Campaniço com o seu recente marido o Francisco Manso. Ela filha de um guarda-florestal da Oleirita e ele filho da comadre que tinha aparado os três filhos de minha avó, entre eles minha Mãe. Aconteceu que, entretanto, faleceu a mãe da Emília deixando 2 filhas crianças ainda, a Guilhermina e a Mariana. Logo minha Mãe as foi buscar e em nossa casa ficaram, até ao casamento da Guilhermina. Mariana, a mais nova, com pouco mais de 18 anos quis acompanhar a irmã quando esta foi morar para Lisboa e por lá ficaram.
A Emília teve três filhos, o Miguel da idade de minha irmã Graças, o Manuel da minha idade e o Abílio da idade do João.
Eram nossos companheiros na brincadeira até nós virmos viver para Évora, em 1939. Ficaram sempre muito ligados a nós.
Eram nossos companheiros na brincadeira até nós virmos viver para Évora, em 1939. Ficaram sempre muito ligados a nós."