Pobreza – uma das faces da Covid-19
A situação daqueles que sofrem problemas financeiros, tanto em Portugal como no resto do mundo, piorou drasticamente com a pandemia viral Covid 19 que provocou o estado de emergência e consequente encerramento de grande parte das empresas e instituições, traduzido numa redução drástica do rendimento, principalmente dos trabalhadores e dos pequenos empresários individuais e micro e pequenas ou médias empresas.
Não será com empréstimos reembolsáveis que o problema se resolve e não será certamente uma solução imediata após o levantamento das leis de confinamento. Se a confiança cai num instante, leva muito tempo a levantar-se[1]. Também há que tomar a consciência que não será a organização solidária que existia antes desta crise que será suficiente para responder às necessidades que irão surgir.
Neste momento existe um tampão que sustem o caos que se avizinha. Os rendimentos baixaram para a grande maioria dos assalariados, seja pelo desemprego ou pelo lay off. As rendas ficam atrasadas, as facturas de água, gás e electricidade estão como que congeladas bem como a liquidação das dívidas financeiras que pesam em muitos orçamentos domésticos e dessas pequenas empresas que estão fechadas e algumas sem grande esperança de retomar a actividade a curto prazo.
Considero imprescindível que as várias instituições de solidariedade social revejam o modo como se poderá dar a resposta adequada a tantas centenas de pessoas que ficaram com os seus rendimentos diminuídos, seja em 30% ou mesmo em perto dos 100%.
Na América Latina experimentou-se com bastante sucesso a experiência dos BCD - Bancos Comunitários de Desenvolvimento [2] com financiamento sem juros ou com encargos muito baixos, e outras instituições de Solidariedade Social incentivando trocas informais, de trabalho, de artesanato, de refeições e com a colaboração de instituições e empresas comerciais.
Lembramos que os BCD surgiram precisamente para apoiar pessoas que não tinham acesso ao financiamento comercial por não darem garantias suficientes de reembolso. Serão organizações informais ou valências de entidades formais mas sempre com gestão autónoma. Deverão ter um órgão de administração em que participem algumas entidades comunitárias da região para definir as directrizes a serem seguidas na acção do banco, seja numa face passiva – captação de recursos ou instituição de parcerias, seja numa face activa de cedência de empréstimos e apoio a investimentos, definindo montantes máximos, as taxas e condições a condicionar; e um órgão executivo para gerir a contratação dos créditos que se poderão dividir em a) Crédito Produtivo – no apoio às micro e mini empresas/ empresários, e b) Crédito ao Consumo – sem juros e em moeda de troca de âmbito social[3].
Os créditos são concedidos baseados numa relação de proximidade totalmente impossível no crédito comercial por não se apoiarem em garantias reais[4] mas na responsabilidade interpessoal da comunidade.
É muito importante compreender que nenhuma instituição de solidariedade social, de per si, irá ter condições financeiras de suportar por um período de tempo que certamente não será pequeno, subsídios ou doações para todos os necessitados. Por esse motivo este projecto propõe, não os donativos mas as trocas voluntárias. Todos devem ser parceiros activos e colaborativos[5], tanto mais que é importante também respeitar a dignidade pessoal, não se trata de uma esmola mas de uma troca. É por isso que se propõe criar bancos de dados em que pessoas ou empresas possam pedir serviços voluntários e oferecer uma ‘remuneração’ em moeda de troca, outros para as pessoas que queiram prestar vários serviços e outros ainda para registar empresas ou instituições que aceitem receber moeda de troca na venda/oferta dos seus produtos e serviços, sabendo por contrato de parceria que essa moeda será resgatada pelo BCD e trocada por dinheiro vivo. Concretamente as entidades que pedem os serviços adquirem a moeda de troca no BCD e vão distribuindo pelos prestadores desses serviços; Estes, com este poder de aquisição poderão trocar a moeda por bens de consumo nas várias entidades parceiras; Estas sabem que poderão resgatá-la no BCD sob as condições acordadas previamente – normalmente com um desconto de quantidade.
É também importante perceber que esta estratégia não prejudica o Estado no recebimento de impostos pois dá um poder de aquisição a quem o não tem (e passaria fome de outra forma) e por outro lado as empresas comerciais cobram o Iva quando vendem os seus bens e serviços (que de outra forma não venderiam)
A Casas de Sant’Ana e S. Joaquim, crl propõe-se implementar o Banco Comunitário de Desenvolvimento [6] Roseiral, de Solidariedade Social, lançando a moeda de troca ‘Rosinha’, em que os necessitados receberão um valor por hora de trabalho voluntário prestado nas instituições associadas e que poderá ser trocado por dormidas, refeições confecionadas, outros bens ou serviços, aquisição de roupa usada, ou mesmo por mercadorias adquiridas em casas comerciais aderentes.
Para que este processo seja viável importa que as várias instituições sociais ajam em conjunto e participem nesta actividade pelo que as venho desafiar a ponderar a sua adesão para implementar este processo com a máxima urgência[7].
A Associação Nacional de Direito ao Crédito – ANDC[8] era apoiada pelo IEFP para desenvolver o microcrédito em Portugal mas o resultado não estava sendo muito positivo na medida em que se apoiava regionalmente nas Associações de Desenvolvimento Local mas “estas parcerias não se desenvolveram dada a concorrência que o microcrédito tem por parte de incentivos financeiros públicos a fundo perdido. Assim, as organizações de desenvolvimento preferem-nos, investindo pouco ou nada na divulgação e no acompanhamento do microcrédito”[9].
A ANDC também se debateu com dificuldade em fazer parcerias com outras instituições sociais mas talvez por problemas de visão pouco elástica por parte destas entidades pois como diz António Pires “Assim as dificuldades da cooperação com outras instituições sociais prendem-se com os factos atrás aduzidos, mas estas dificuldades também têm um carácter de natureza cultural. Estas instituições não entendem a abordagem do microcrédito e por isso tratam a luta contra a exclusão com uma mentalidade «assistencialista», que não se coaduna com a necessidade de promover o empreendedorismo e também por outro lado, os seus técnicos sociais não terem preparação para apoiar os projectos ao nível da sua ainda que simples gestão. (Mendes et al. 2007) Existe por isso um grande caminho a ser percorrido para que o microcrédito tenha uma maior expressão na realidade social portuguesa”. Lamento ter de concordar com ambas as dificuldades com que eu próprio já me confrontei num passado muito recente. É minha convicção que esta mentalidade terá de mudar se se pretender sair desta situação da crise actual.
Na realidade a Pobreza vai aumentar com o Covid19! Pode ser um problema mas podemos transformar este desafio na solução que até agora não apareceu na nossa economia por inércia, por medo de mudança ou por não se perceber que os ricos são cada vez mais ricos e os pobres afundam-se cada vez mais na sua fragilidade sem capacidade de levantarem a cabeça[10].
Nuno Potes Cordovil Évora, Abril de 2020
ABRAMOVAY, Ricardo; JUNQUEIRA, Rodrigo Gravina P. A sustentabilidade das microfinanças solidárias. Revista de Administração da USP, São Paulo, v. 40, n. 1, p. 19-33. jan./fev./mar./2005.
FRANÇA FILHO, Genauto C. de; RIGO, Ariádne S.; SILVA JÚNIOR., Jeová T. Microcredit Policies in Brazil: An Analysis of Community Development Banks. In: INTERNATIONAL CONFERENCE AND RESEARCH PROJECT ON INFORMAL ECONOMY, VULNERABILITIES AND EMPLOYMENT, 2012, Genebra. Anais… Faculté des Sciences Économiques et Sociales, Genebra, 2012. FRANÇA FILHO, Genauto C. de. Teoria e prática em economia solidária: problemática, desafios e vocação. Porto Alegre: Civitas, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 155-174, jan./jun., 2007.
“LEDGERWOOD, Joanna. 1998. Microfinance Handbook: An Institutional and Financial Perspective. Washington, DC: World Bank. © World Bank.
PIRES, António José Duarte; 2009 Tese “O Microcrédito em economias desenvolvidas: Estudo de caso em Portugal”; Universidade do Minho
[1] “A confiança é um edifício difícil de ser construído, fácil de ser demolido e muito difícil de ser reconstruído” (Augusto Cury)
[2] Acompanhamos, transcrevendo em muitas notas o artigo “Bancos Comunitários de Desenvolvimento na Política Pública de Finanças Solidárias Apresentando a Realidade do Nordeste e Discutindo Proposições”, de Ariádne Scalfoni Rigo, Genauto Carvalho de França Filho, Leonardo Prates Leal (inserto em “Desenvolvimento em Questão” Editora Unijuí n31, Jul/Set2015)
[3] “O julgamento das solicitações de crédito e a sua eventual cobrança possuem um carácter original, pois fundamentam-se num mecanismo social de controlo entre os membros da comunidade (França Filho et al., 2012) e não no formalismo regido por legislações e um número excessivo de formulários e documentos.”
[4] “Ao solicitar um empréstimo, o agente de crédito do BCD realiza um cadastro simplificado, e em seguida consulta sua rede de relações e vizinhança como principal fonte de informação sobre a pessoa na comunidade. Segundo Abramovay e Junqueira (2005, p. 23), citando Ledgerwood (1999), “são mecanismos como estes que diminuem as taxas de juros e o índice de inadimplência através de um monitoramento efetivo monitoramento invisível”. Para França Filho e Silva Júnior (2009), tal aspecto afirma a particularidade da metodologia de operações de crédito dos BCDs, os quais ocorrem, sobretudo, por meio de redes de “prossumidores”. Estas redes são assim denominadas pelo fato de associarem produtores e consumidores locais mediante o estabelecimento de canais ou circuitos específicos de relações de trocas facilitadas pelo uso da moeda social.”
[5]“No intuito de estimular a produção e o consumo local, o BCD cria e mantém no território instrumentos de incentivo ao consumo, tais como cartão de crédito e a moeda social circulante local. Estes, ao se tornarem legítimos no território, o que exige um processo relativamente longo de sensibilização, desempenham papel importante não apenas económico no sentido da circulação interna da riqueza, mas também simbólico, político e identitário. O uso da moeda social acaba fomentando o exercício do controle social do dinheiro e reforçando o sentimento de identidade dos moradores em relação ao seu lugar.”
[6] “Após sua criação o BCD fica vinculado formalmente a uma entidade gestora que pode ter um papel activo dentro e fora do BCD mas nalguns casos, todavia, ela apenas serve de “guarda chuva” institucional para funcionamento do banco, tendo estrutura e equipe completamente separadas. Nestes casos, a gestão do BCD não se confunde com a gestão da associação, e seus membros desempenham funções distintas.”
[7] “De modo geral estas organizações têm buscado constituir seus fundos de crédito de várias formas, configurando uma hibridação de fontes de recursos, mas, em grande medida, insuficientes. As principais fontes identificadas na pesquisa foram: a) as oriundas de mobilização de recursos comunitários, com a realização de eventos, bingos, rifas e doações; b) as oriundas das entidades públicas, por meio dos projectos das EAFs; c) as oriundas de doações diversas, como as realizadas pelas organizações locais que participam do Conselho Gestor. Esta última, também não deixa de ser uma forma de mobilização de recursos do território.”
[8] Só já depois de ter publicado este artigo fui informado da dissolução da ANDC em 2019 pelo que estes últimos parágrafo foram agora adaptados.
[9] Pires,Ant Tese de Mestrado UM 2009
[10] “Pensamos que, com apoio institucional adequado no âmbito de uma política pública de finanças solidárias, os BCDs têm potencial de se tornarem mecanismos efetivos de enfretamento da pobreza.”